segunda-feira, janeiro 17, 2011

Manuscritos de Kafka guardados em Zurique são disputados na Justiça

O destino do espólio literário de Franz Kafka tomou proporções jurídicas. Caixas contendo alguns de seus manuscritos foram abertas na Suíça. O conteúdo das mesmas, contudo, continua em segredo.

Manuscritos originais do escritor Franz Kafka (1883-1924) foram tirados na última segunda-feira (20/07) de uma caixa-forte do banco suíço UBS, em Zurique.
Segundo informações publicadas em vários jornais, foram abertos quatro cofres, dentro dos quais estavam guardados por mais de 50 anos manuscritos e desenhos de autoria de Kafka. Entre os documentos, presume-se que esteja um conhecido conto de Kafka, escrito de próprio punho pelo escritor e avaliado em fortunas.
O conteúdo exato do material permanece, contudo, ainda desconhecido da opinião pública, uma vez que as partes envolvidas se recusam a dar mais informações. Os documentos são o cerne de uma batalha legal que se arrasta por um século, incluindo um poeta morto, amigo de Kafka, uma secretária e suas filhas, bem como o Estado de Israel.
O caso foi levado à Justiça em Tel Aviv nos dois últimos anos. Não pela literatura, mas pelo valor financeiro que os documentos representam, duas irmãs, hoje já idosas, brigam na Justiça contra o Estado de Israel pela posse dos manuscritos de Kafka.
Os documentos foram herdados pelas duas da própria mãe, ex-secretária de Max Brod, amigo de Kafka, mas a Biblioteca Nacional de Israel considera os originais como parte da herança cultural do país.
Semelhança entre realidade e ficção
A história desse legado de Kafka é tão cheia de complexidades, labirintos, absurdos e batalhas, que poderia sem problemas compor algum romance do próprio Kafka. O primeiro capítulo começa com uma carta do escritor a seu amigo Max Brod, composta de duas frases escritas em um pedaço de papel manchado de tinta:
"Caro Max, meu último pedido: tudo o que deixo [...] no sentido de diários, manuscritos, cartas, minhas e de outros, esboços e outras coisas, deverá ser completamente incinerado e apagado; o mesmo vale para tudo o que tiver sido desenhado ou escrito por mim  e estiver sob sua propriedade ou de outros, perante os quais você intercederá. [...] Seu, Franz Kafka".
Brod desobedeceu. Em vez de queimar tudo, como pedira o escritor, ele guardou os documentos e os contrabandeou de Praga para Tel Aviv, na véspera da invasão da então Tchecoslováquia pelos nazistas, em 1939. Mais tarde, Brod deu os papéis, de presente, à sua então secretária, Esther Hoffe, que por sua vez os entregou às suas duas filhas, Eva Hoffe e Ruth Wiesler, antes de morrer.
Herança cultural judaica
As irmãs Hoffe, ambas com mais de 70 anos hoje, acabaram em uma sala de tribunal israelense, tão logo decidiram vender os documentos de Kafka ao Arquivo Literário da cidade de Marbach, na Alemanha. Meir Heller, advogado da Biblioteca Nacional Israelense, defende que os manuscritos de Zurique fazem parte de um tesouro cultural nacional de Israel.
"Os documentos têm que permanecer acessíveis ao público israelense", diz ele. Heller afirma ainda que Israel é o abrigo legítimo de todos os trabalhos dos grandes pensadores judeus. "Um autor judeu, que escrevia em alemão, nascido em Praga – a que nação você atribuiria  Kafka?", pergunta Manfred Engel, especialista na obra do escritor da Universidade do Sarre, na Alemanha. "Não é fácil, mas, para mim, o Arquivo de Marbach parece ser o lugar mais adequado para os documentos", diz ele.
Marbach, próximo a Stuttgart, abriga a segunda maior coleção de manuscritos de Kafka em todo o mundo, depois de Oxford, preservando inclusive o manuscrito do romance O Processo, comprado em um leilão da Sotheby's em 1988 por 3,5 milhões de marcos (1,75 milhão de euros).
"Do ponto de vista de um pesquisador, é melhor guardar todos os documentos em um lugar só, de forma que a obra não continue fragmentada", argumenta Engel.
"A coisa mais importante é que os documentos sejam preservados e se tornem acessíveis ao público", comenta Ulrich von Bülow, diretor do departamento de manuscritos do Arquivo de Marbach. "Não somos participantes, mas meramente observadores desse caso", diz.
 Tesouros literários escondidos
A Justiça de Tel Aviv ordenou recentemente a abertura das quatro caixas guardadas nos cofres do banco UBS em Zurique. Situação semelhante ocorreu em dois bancos de Tel Aviv na última semana, onde foram abertas seis caixas. Embora ninguém tenha a permissão para dizer qualquer coisa sobre o conteúdo das mesmas, especulações pipocam pela internet.
"Sabe-se, por exemplo, que algumas páginas de Carta ao Pai – um texto aflito e irado escrito por Kafka em 1919 e considerado a chave para a compreensão da obra do autor – se encontram entre os documentos. Outros manuscritos incluem as narrativas Um Médico RuralPreparativos para um Casamento no Campo e O Sonho, estimadas em algumas centenas de milhares de libras esterlinas", escreveu o diário londrino The Guardian na edição da última segunda-feira.
Processo "kafkaniano"
Michael Engel não espera que seja feita nenhuma descoberta nos cofres de Zurique. "Embora os diários de Brod devam ser muito interessantes, eles contêm, em sua maioria, informações biográficas em especial sobre o jovem Kafka". Segundo Engel, os esboços e desenhos do autor são também particularmente interessantes para o mundo literário. "Kafka como ilustrador é realmente um gênio desconhecido", conclui ele.
Franz Kafka em Praga, por volta de 1920Franz Kafka em Praga, por volta de 1920
Itta Shedletzky, conhecida especialista na obra do escritor, irá agora compilar um inventário dos papéis que se encontram em Zurique. Quando o processo for concluído, os advogados irão apresentar um documento detalhado à Justiça e a juíza Talia Koppelman irá decidir quem serão os herdeiros legítimos dos manuscritos, cartas e desenhos: se as irmãs Hoffe, que poderão então vendê-los ao arquivo literário alemão, ou a Biblioteca Nacional em Jerusalém.
Com todas essas idas e vindas, se há um termo adequado para descrever todo esse processo, esse termo é "kafkaniano". E o fim dessa novela ainda terá que ser escrito.   

Autora: Monika Griebeler (sv)
Revisão: Roselaine Wandscheer

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